Graças ao nosso rei D. João IV, havia já anos que Portugal vivia a sua feliz independência. Apesar de tudo, o monarca português, temendo alguma cilada dos Castelhanos, tinha mandado pôr guarnições em todas as praças-fortes fronteiriças, entregando-as ao cuidado de honrados e ilustres fidalgos.Monção, uma dessas praças portuguesas, sentia-se ameaçada, mas D. João IV, prevendo o perigo que podia correr, confiou-a a um dos mais ilustres cavaleiros portugueses: D. João Rodrigues de Vasconcelos. A ele, foi confiado esse cargo elevado por ter praticado atos importantes por terras de Cartagena das Índias e do Nordeste Brasileiro, vindo a tornar-se notável fidalgo.O ataque a esta praça seria muito fácil, pois o único limite: era um pequeno curso de água, ao qual davam o nome de rio Minho.Um certo dia, alguns fidalgos vieram visitar o governador a Monção. Em face disto, o ilustre hóspede organizou uma festa pomposa para todos os nobres, e os seus representantes, que o quiseram visitar nesta terra portuguesa. Um dos cavaleiros, que assistia ao festim, recitava passagens emocionantes dos “Sermões” de Padre António Vieira, um dos melhores oradores da época. Toda a atenção das damas e cavaleiros estava voltada para as palavras daquele fidalgo, quando a porta se abriu discretamente. Um dos escudeiros, sem que fosse visto, entrou, aproximou-se de D. João Rodrigues de Vasconcelos e segredou-lhe qualquer coisa que pareceu ser acatada com mau humor. O governador disse à sua esposa, que se encontrava a seu lado, que fizesse as honras da casa porque ia ausentar-se e não sabia se demoraria. Quando chegou ao salão de visitas viu que era Pedro de Bettencourt, capitão de armas, que queria falar-lhe. Bettencourt inclinou-se, respeitosamente, para o saudar e apressou-se a pedir desculpas por ter interrompido a sua festa, mas que o fez visto tratar-se de um perigo para a Pátria. O governador, que não sabia de nada, encheu-se de curiosidade e pediu que lhe contasse o sucedido, imediatamente. Então, este começou por dizer que uma contrabandista, que acabava de chegar de Espanha, trazia a notícia de que um grosso corpo de soldados Castelhanos estavam preparados para vir atacar Portugal, e por isso o melhor era reagir imediatamente.Momentos depois, D. João de Vasconcelos voltava ao salão do festim com ar carregado e preocupado, mas D. Mariana leu no semblante do marido qualquer coisa de extraordinário, e perguntou se tinha más notícias. D. João de Vasconcelos explicou a razão da sua preocupação, o que inquietou um pouco sua esposa.A noite veio e Pedro Bettencourt, que a mandado do governador tinha ido com soldados fazer pesquisas, não aparecia. O governador deixou sua casa, e foi debruçar-se nas muralhas da fortaleza. Tudo era silêncio, apenas se ouvia o rumor das águas límpidas do rio, onde a lua se refletia. De repente, um barulho estranho o fez despertar daquela sonolência. Olhou e viu um barquito que vogava, apressadamente, o rio. Correu à margem e viu que era o seu emissário.- Então, o que é feito da tua gente? Interrogou, ansiosamente, o Conde.- Nem eu sei ao certo, respondeu Bettencourt. Deixei tudo e vim preveni-lo, pois a nossa Nação precisa de socorro imediato.Ao outro dia, encostadas às muralhas da fortaleza, viam-se mulheres e crianças chorosas que se despediam dos maridos e dos pais. Eles partiam para servir a Pátria e defender o seu Rei, pensava D. Mariana, que também via, naquela multidão de homens, o seu marido. Antes de se separarem, ele tinha-lhe dito que se durante três dias não recebesse notícias suas, é porque fazia parte daqueles que haviam dado a sua própria vida pela honra da Nação!Três dias se passaram sem que houvesse notícias. D. Mariana sentia o seu coração estalar de dor e angústia, e a todo o passo parecia ver diante de si a figura exangue do marido a sucumbir. Estava na verdade abatida e desde que ele partira não tinha dormido uma só hora. Olhava com saudade o futuro, e sentia, cada vez mais, morrer em si a esperança de o ver com vida diante dos seus olhos. O que seria feito dele? Todos o ignoravam. Talvez, como o próprio governador avisara, fizesse já parte daqueles que deram o seu sangue pela Pátria. Entrou nos seus aposentos e tudo parecia inerte, muito vago e banal. Ajoelhou-se em frente da imagem de Jesus, e durante uma hora os seus joelhos firmes, no pavimento, não se mexeram e o seu pensamento corria de encontro a quem a podia auxiliar. Orava pelos irmãos de armas de seu esposo, por ele, pela Pátria, pelo Rei; as suas orações pareciam não ter fim. Seguidamente, levantou-se sem o menor ruído, correu ao seu quarto e deixando-se cair em cima do luxuoso leito, assim permaneceu durante toda a noite. Mal conseguia adormecer. Noite dentro, acordando em sobressalto, correu às muralhas julgando alcançar qualquer esperança; mas tudo era sereno e mudo, e nesta ansiedade permaneceu, até que qualquer coisa surgiu em terras espanholas: um grupo de cavaleiros portugueses, de ar carregado, olhos no chão, caminhava calados e inquietos. À frente vinha D. João de Vasconcelos, com a mesma expressão dos seus camaradas.D. Mariana, ao ver tão esperado cortejo, pareceu ficar louca de alegria e entusiasmo, mas, passados minutos, começou a admirar um dos espetáculos mais horríveis da sua existência. Um grupo de espanhóis, galopando abertamente, surgiu de entre os matagais de silvas e choupos! Aparecendo de surpresa frente a meia dúzia de almas portuguesas extenuadas, julgaram resolvida a contenda. O combate começou e a agilidade dos nossos era extraordinária; mas que poderia fazer tão pouca gente contra aquela multidão de piratas cruéis?A Condessa, dentro das muralhas de Monção, assistia a esta peleja. Vendo o seu esposo defender-se com coragem e bravura dum bando de galegos; vendo os seus irmãos caírem cobertos de sangue, ensopados em pó, não pôde resistir. Correu a chamar auxílio para aqueles infelizes que acabavam de suspirar. Nada conseguiu; as forças eram quase nada, e de nada servia a sua parca resistência, pois acabariam por fazer companhia aos que faziam já parte dos mortos.Não desanimou, porém, a heroica mulher. Pediu que lhe trouxessem, imediatamente, todas as munições que existissem na praça de Monção. Toda a gente trabalhava: uns levavam os canhões, outros traziam pólvora, e até a própria Condessa ajudou a colocar, na margem do rio, as peças de artilharia.Soou o primeiro tiro quando acabava de aparecer novo grupo de soldados inimigos, os quais foram ceifados, imediatamente, pela metralha. Outra e mais outra, as balas partiam e um fumo, cheirando a pólvora queimada, espalhava-se no ar. Dentro em pouco, o combate tinha fim, com a vitória dos portugueses, e os poucos que escaparam àquele cruel combate já atravessavam o rio Minho, em quatro batéis. D. Mariana, trémula, mas com um sorrir de heroicidade no rosto, esperava a chegada dos barquitos.Enfim, chegaram, e todos a felicitaram e lhe agradeciam a vida. Mas, sentindo-se ela elevada em demasia por aqueles que viram diante de si a sombra terrível da morte, afirmava que nada de maior tinha feito, por eles ou pela Pátria. Apenas tinha cumprido o seu dever. O seu marido, que até ali tinha estado calado e pensativo, disse, com lágrimas nos olhos:- Não sei que encanto ou que fado tem esta terra, Senhora. Porque faria Deus as mulheres de Monção tão grandes heroínas?- Não é justo que se chame a uma mulher, que não fez mais que o seu dever, uma heroína, retorquiu D. Mariana.Afastado o perigo e dando asas à alegria, subiram todos à praça para festejarem tão grande fortuna.